terça-feira, novembro 08, 2005

A Princesa e a Ervilha

Conhecem a história da Princesa e da Ervilha? Nesta, a princesa prova a sua condição porque uma simples ervilha, estrategicamente colocada sob sete colchões e sete edredões, a impede de dormir uma noite inteira.
Pois bem, eu sou a ervilha. Não no sentido de ser afectada pela princesa, mas sim porque estou sempre a levar com o enxoval em cima.

Vejam só: num dia que eu quero que seja bom, um recomeço, visto a minha melhor roupa, com a qual já me elogiaram, maquilho-me, penteio-me a rigor, e saio para a rua. Quando encontro alguém e fico à espera do elogio “that will make my day”, aparece a princesa. Magra, elegante, vestida como sempre. Eu, a ervilha, desapareço novamente debaixo dos colchões e dos edredões todos. E fico magoada com tanta pressão.

Mais uma: no dia X, vou ao cabeleireiro, corto e arranjo o cabelo, maquilho-me, visto-me para ir a uma festa. Chego e nem um comentário. Entretanto, chega outra pessoa, que fez exactamente o mesmo que eu e logo os olhares se viram e as bocas se abrem de espanto para revelar o que eu já sei: chegou a princesa e eu vou ser, mais uma vez, relegada para cima do estrado da cama, debaixo da parafernália toda.

Ai que dor. Ai que falta de vontade de me mascarar de princesa. Afinal, serei sempre uma ervilha, redondinha e reluzente, sem dote ou coroa para oferecer.

(escrito em 13·05·05)

Eu ia e tirava (ou como eliminar o pneu e rodar sobre a jante)

Noutro dia, numa conversa à mesa, durante o almoço, comentaram comigo que devia tirar. Aproveitava uma ocasião propícia e pronto, aproveitava para tirar. Entretanto, falou-se também de uma outra pessoa com o mesmo problema: o de precisar de tirar. E, como tem dinheiro, nada a impede de ir e tirar. Sabe-se lá por quê. Do que ninguém se lembrou foi de pensar se isso é realmente importante para as visadas. Se estou feliz assim, ou se a outra também está. É indubitável que se sofre com isso. É um fardo que nos acompanha, é uma fama que nos persegue, é uma sombra que nos faz sobressair do resto do mundo.

Sou grande, pronto. Já nem se põe a questão de ter um pneu aqui ou ali. Toda eu sou uma câmara de ar, embora esteja aí para as curvas. Elas estão lá, mas inflaccionadas em todo o seu esplendor. E toda a gente me aconselha a desapertar o pipo e a deixar sair o ar. O que já fiz vezes sem conta, para voltar sempre ao estado inicial, ou pior ainda. Ou, como agora está na moda, a recauchutar o pneumático.

Mas eu não estou para isso. Depois de várias tentativas para despejar o ar (com sucesso, diga-se), quando se precisa de voltar ao dia-a-dia, torna-se extremamente incómodo rodar sobre a jante e acabamos por tornar a encher o pneu. Até porque este se estraga com tanta instabilidade.

A alternativa também não me agrada, porque um pneu recauchutado deixa de ser a mesma coisa. Não tem a mesma qualidade. Só sente quem tem de rodar com ele a vida inteira.

(escrito em 23·07·04)

O sexo faz mal a garganta

— Porquê?
— Porque sim.
— Porque sim não é resposta.
— Ora, porque toda a gente sabe que o sexo faz mal à garganta.
— Mas onde é que viste isso?
— Em lado nenhum, toda a gente sabe.
— Mas quem é toda a gente? Dá-me um nome. Quem é que te disse isso?
— Ouvi dizer.
— Mas a quem?
— Olha, sei lá, ouvi dizer. E toda a gente sabe que sim.
— Mas toda a gente é muito vago. E o meu médico até disse que era bom para a saúde. Acho muito estranho. Onde é que isso está escrito? Eu quero ver isso no papel…
— Para quê? Toda a gente sabe. Esses médicos são doidos…
— Pronto, deixa lá.

Não se assustem. Nada disto é verdade e a conversa não foi esta. Mais uma vez, rondou o tema engordar. E basta substituir o sexo por café e o faz mal à garganta por engorda para termos mais um tratado de sabedoria popular, em que ninguém sabe por quê nem como mas toda a gente sabe que sim.

Não há nada que me irrite mais que ouvir dizer: “Toda a gente sabe”. Que eu saiba, eu faço parte de toda a gente e custa-me estar completamente a leste de uma informação tão importante. E o que me irrita ainda mais é o facto de muito poucos dessa gente toda serem capazes de duvidar, de pesquisar, de pegar num livro para terem mesmo a certeza do que dizem. Limitam-se a tomar como garantido o que ouviram dizer sabe-se lá onde e enche m-se de importância a transmitir esses tão valiosos conhecimentos.

Para além do café, o pão também engorda imenso. Não são a manteiga, o chouriço, o queijo, a marmelada, a banana com açúcar que se põe dentro de um alimento tão básico. Não senhor, o pão é que engorda. Assim como a água. Toda a gente sabe.

(escrito em 27·11·03)

É para me sentar melhor

A minha sobrinha perguntou-me: "Ó tia, por que é que tens o rabo tão grande?". Eu só lhe pude responder, qual lobo mau disfarçado de avozinha, "É para me sentar melhor".

A preocupação das pessoas com o tamanho do rabo dos outros está a tomar proporções desesperantes. É que parece que estão preocupados com o facto de eu me poder sentar em cima deles. Ou com o poder ocupar o espaço que lhes está reservado. Bem, há quem o faça, mas eu, por enquanto, ainda caibo numa normal cadeira de cinema ou de avião, ou até me sento no chão para não ocupar muito espaço no sofá.

Mas o que é realmente preocupante é que isso comece quando o menino torce o pepino. As crianças já são educadas para discriminar os gordos. Aliás, a palavra gordo é hoje utilizada com o mesmo desprezo com que era, há muitos anos atrás, a palavra preto. E as crianças, que já vão aprendendo que os africanos são nossos irmãos, apenas mais escuros, aprendem agora a ser racistas de outra forma.

Como a minha sobrinha, mas dessa trato eu.

(escrito em 22·09·03)